terça-feira, 2 de agosto de 2022

Alma

A alma seria tão só um ato pronunciável, e, por isso, cada um pesaria o que pesasse a sua própria fala. (...) Falamos da alma para criar e recriar a sua existência, e assim inevitavelmente se (pode) concluir que a alma pesa tanto quanto aquilo que uma região sem peso pesa. Pesa o peso do Universo e o peso da sua ausência. A leveza da sua alegria e o peso da sua dor. Pesa o que pesa a consciência de si, quando se narra. A alma é uma narrativa acumulada, enquanto se possui uma língua que a fala.


(Lídia Jorge, Combateremos a Sombra)

sexta-feira, 7 de maio de 2021

O Programa dos dez pontos (maio de 1967)

O QUE QUEREMOS AGORA! EM QUE ACREDITAMOS?

Para aquelas pobres almas que não conhecem a história dos negros, as crenças e os desejos do Partido Pantera Negra para a auto-defesa podem parecer absurdos. Para o povo negro, os dez pontos são absolutamente essenciais para a sua sobrevivência. Temos ouvido a frase revoltante “essas coisas levam tempo” por 400 anos. O Partido Pantera Negra sabe o que o povo negro quer e precisa. A unidade negra e a autodefesa tornarão essas demandas uma realidade.

O QUE QUEREMOS:

  1. Nós queremos liberdade. Queremos poder para determinar o destino da nossa comunidade negra. 

  2. Queremos desemprego zero para nosso povo.

  3. Queremos o fim da ladroagem dos capitalistas brancos contra a comunidade negra.

  4. Queremos casas decentes para abrigar seres humanos. 

  5. Queremos educação para nosso povo! Uma educação que exponha a verdadeira natureza da decadência da sociedade americana. Queremos que seja ensinada a nossa verdadeira história e nosso papel na sociedade atual. 

  6. Queremos que todos os homens negros sejam isentos do serviço militar. 

  7. Queremos um fim imediato da brutalidade policial e dos assassinatos de pessoas negras.

  8. Queremos liberdade para todos os negros que estejam em prisões e cadeias federais, estaduais, distritais ou municipais. 

  9. Queremos que todas as pessoas negras levadas a julgamento sejam julgadas por seus pares ou por pessoas das suas comunidades negras, tal como definido pela Constituição dos Estados Unidos. 

  10. Queremos terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz. 

O QUE ACREDITAMOS:

Acreditamos que nós, o povo negro, não seremos livres enquanto não formos capazes de determinar nosso destino.

  1. Acreditamos que o governo federal é responsável e obrigado a dar a todos os homens e mulheres emprego e garantir alguma forma de salário. Acreditamos que se os homens de negócio, brancos e americanos, não quiserem dar emprego a todos, então os meios de produção devem ser tomados deles e colocados a disposição da comunidade para que as pessoas possam se organizar e empregar toda a gente, garantindo um nível de vida de qualidade.

  2. Acreditamos que esse governo racista nos roubou, e agora exigimos um pagamento de sua dívida de 40 hectares e duas mulas. Esse pagamento foi prometido há 100 anos como restituição por todo o trabalho escravo e os assassinatos em massa do povo negro. Nós iremos aceitar o pagamento em moeda corrente e ele será distribuído por todas as nossas comunidades. Os alemães estão agora ajudando os judeus em Israel pelo genocídio que realizaram contra aquele povo. Os alemães mataram 6 milhões de judeus. Os americanos racistas foram parte do assassinato de mais de 50 milhões de pessoas negras; portanto, sentimos que essa é uma demanda bem modesta que estamos fazendo.

  3. Acreditamos que, se os donos de terras brancos não derem moradias decentes para a comunidade negra, então as terras e as casas devem ser conseguidas através de cooperativas de modo que nossa comunidade, com a ajuda do governo, possa construir casas decentes para seu povo.

  4. Acreditamos em um sistema educacional que dê ao nosso povo o conhecimento de si próprio. Se uma pessoa não tem conhecimento de si mesma e de sua posição na sociedade e no mundo, essa pessoa terá pouca chance de se relacionar com qualquer outra coisa.

  5. Acreditamos que o povo negro não pode ser forçado a lutar no serviço militar para defender um governo racista que não nos protege. Nós não vamos lutar nem matar outras pessoas de cor no mundo que, como o povo negro, estão sendo vitimizadas pelo governo americano branco e racista. Nós vamos nos proteger da força e da violência dessa polícia racista e desse exército racista, usando todos os meios necessários.

  6. Acreditamos que podemos acabar com a brutalidade policial em nossa comunidade negra organizando grupos negros de auto-defesa dedicados a defender nossa comunidade negra da opressão e brutalidade da polícia racista. A Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos nos dá o direito de portar armas. Portanto, nós acreditamos que todo o povo negro deva se armar para auto-defesa.'

  7. Acreditamos que todos os negros devam ser libertados das várias prisões e cadeias, porque não tiveram julgamento justo e imparcial.

  8. Acreditamos que os tribunais devam seguir a Constituição dos Estados Unidos para que o povo negro receba julgamentos justos. A 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos dá a toda pessoa o direito de ser julgada por seus pares. Um par é uma pessoa de origem econômica, social, religiosa, geográfica, ambiental, histórica e racial similar. Para dar cumprimento a isso, o tribunal teria que compor um júri com elementos da comunidade negra, quando o réu fosse negro. Nós temos sido e estamos sendo julgados por júris totalmente compostos por brancos, que não têm nenhuma compreensão do que seja o "pensamento médio" da comunidade negra.

  9. Quando, no curso dos acontecimentos humanos, torna-se necessário a um povo dissolver os laços políticos que o ligavam a outro e assumir, entre os poderes da Terra, uma posição separada e igual àquela que as leis da natureza e de Deus lhe atribuíram, o digno respeito às opiniões dos homens exige que se declarem as causas que o impelem a essa separação. Acreditamos que essas verdades sejam evidentes, que todos os homens são criados de maneira igual, que eles foram dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, dentre os quais estão a vida, a liberdade e a busca por felicidade. Que, para assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados - que, quando qualquer forma de governo se torna destrutiva desses fins, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando os seus poderes da forma que ao povo pareça mais conveniente para sua segurança e felicidade. A prudência, de fato, recomenda que os governos instituídos há muito tempo não sejam alterados por motivos fúteis e temporários; e, segundo a experiência tem demonstrado, as pessoas preferem sofrer, enquanto os males são suportáveis, a corrigir a injustiça, abolindo as formas às quais estão acostumados. Mas, quando uma longa série de abusos e usurpações, voltadas invariavelmente ao mesmo objetivo, indica o desígnio de submeter as pessoas ao despotismo absoluto, é um direito delas, um dever delas, abolir tal governo e instituir novos guardiães para a sua segurança futura.

sábado, 17 de abril de 2021

O Valor da Ingenuidade

O maior perigo que corre o ingénuo: o de querer ser esperto. Tão ingénuo que cuida, coitado, de que alguma vez no mundo o conhecimento valeu mais do que a ingenuidade de cada um. A ingenuidade é o legítimo segredo de cada qual, é a sua verdadeira idade, é o seu próprio sentimento livre, é a alma do nosso corpo, é a própria luz de toda a nossa resistência moral. Mas os ingénuos são os primeiros que ignoram a força criadora da ingenuidade, e na ânsia de crescer compram vantagens imediatas ao preço da sua própria ingenuidade. Raríssimos foram e são os ingénuos que se comprometeram um dia para consigo próprios a não competir neste mundo senão consigo mesmos. A grande maioria dos ingénuos desanima logo de entrada e prefere tricherno jogo de honra, do mérito e do valor. São eles as próprias vítimas de si mesmos, os suicidas dos seus legítimos poetas, os grotescos espanatalhos da sua própria esperteza saloia. Bem haja o povo que encontrou para o seu idioma esta denunciante expressão da pessoa que é vítima de si mesma: a esperteza saloia. A esperteza saloia representa bem a lição que sofre aquele que não confiou afinal em si mesmo, que desconfiou de si próprio, que se permitiu servir de malícia, a qual como toda a espécie de malícia não perdoa exactamente ao próprio que a foi buscar. Em português a malícia diz-se exactamente por estas palavras: esperteza saloia. Parecendo tão insignificante, a malícia contudo fere a individualidade humana no mais profundo da integridade do próprio que a usa, porque o distrai da dignidade e da atenção que ele se deve a si mesmo, distrai-o do seu próprio caso pessoal, da sua simpatia ou repulsa, da sua bondade ou da sua maldade, legítimas ambas no seu segredo emocional. Porque na ingenuidade tudo é de ordem emocional. Tudo. O que não acontece com as outras espécies de conhecimento onde tudo é de ordem intelectual. Na ordem intelectual é possível reatar um caminho que se rompeu. Na ordem emocional, uma vez roto o caminho, já nunca mais se encontrará sequer aquela ponta por onde se rompeu. O conhecimento é exclusivamente de ordem emocional, embora também lhe sirvam todas as pontas da meada intelectual. 


Almada Negreiros, in "Ensaios"

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Vida em Família

 A mãe faz tricô

O filho faz a guerra
A mãe acha isso natural
E o pai? O que faz o pai?
Faz negócios
A mulher faz tricô
O filho a guerra
E ele negócios
O pai acha isso natural
E o filho e o filho
O que é que o filho acha?
Não acha nada absolutamente nada
Acha que a mãe faz tricô que o pai faz negócios e que ele faz a
      guerra
Depois de fazer a guerra
Fará negócios com o pai
A guerra continua a mãe continua a tricotar
O pai continua a fazer negócios
O filho foi morto já não continua
O pai e a mãe vão ao cemitério
O pai e a mãe acham isso natural
A vida continua com o tricô, com a guerra, com os negócios
Os negócios a guerra o tricô a guerra
Os negócios os negócios e os negócios
A vida com o cemitério.
 
 
 
jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007

quinta-feira, 25 de março de 2021

Êxtase

E estando juntos destruímos portas

somos o equilíbrio das forças reclinadas

devassamos o corpo como um mito


Alberto de Lacerda

in Labaredas

Tinta da China

2018

quarta-feira, 24 de março de 2021

Antigamente

Antigamente conseguíamos acreditar nas coisas

invisíveis, nas sombras e nas sombras delas,

numa luz escura e rósea como uma pálpebra.

Ah, as mandíbulas da máquina fotográfica

mordem as imagens. Conseguimos acreditar agora

só no antigamente, exactamente como o pobre

antigamente acreditava em nós, netos e bisnetos,

sonhando que um dia viríamos a sair da armadilha que

em cada geração encenam Danton

e Robespierre, Beria e outros ambiciosos

discípulos. Uma vez que não há refúgio,

há refúgio. Porque as coisas invisíveis

também existem, com sons

que ninguém ouve. Não há

consolação e há consolação, sob o

cotovelo do desejo, lá onde cresceriam

pérolas, se as lágrimas fossem dotadas de memória.

E contudo o patinador não perde o equilíbrio,

saindo às arrecuas do precipício. Contudo

tanto a alvorada como o leiteiro se levantam cedo

e correm na neve, deixando brancas pegadas,

que se enchem de água. Um pequeno pássaro bebe essa água

e canta mais uma vez

salva a desordem das coisas e a ti e a mim

e ao próprio canto.




adam zagajewski
sombras de sombras
tinta-da-china
2017

segunda-feira, 22 de março de 2021

As mãos

Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornaram pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do teu coração. Como pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo que foi o meu destino.

 

marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995